Já tenho uma casa aqui.
Já arrumei funções novas pra almofadas antes decorativas: agora servem pra deixar o assento da cadeira menos frio, ainda que a estação oficial por aqui seja o verão.
Já arrumei funções novas pro armário da sala, antes apoio pra coleção de bonitezas: agora serve pra guardar louça e parte da bela coleção de utilitários de palha de uricuri – lá do povoado Passagem, em Neópolis – destacadas pelo verde do bonsai que a prima Mel me presenteou aqui.
Já arrumei um lugar novo pros vários bichos de cerâmica, em particular os do meu altar egípcio: antes espalhados pela casa, agora formam o minizoo suspenso na prancha sobre a pia, a bicharada toda ali no poleiro, inclusive a cobra protegendo a entrada da casa.
Já arrumei uma casa nova, uma nova casa, enfim, um lugar onde começar esse projeto de vida que tem na base se renovar ao calor do desejo e conforme se (des)acomodam as abóboras na carroça.
Arrisco dizer que um risco desses só se pode correr num lugar onde o entorno e a circunstância possam dar guarida à ideia de segurança necessária pra um projeto assim. E é nesse lugar que a sensação de pertencimento favorece a condição pra eu correr o risco. Pelo menos é assim pra mim.
Quando cheguei em Aracaju, em 2004, Arnaldo Antunes cantava no TTB “meu corpo é minha casa, estou em qualquer lugar”. Fiz desse verso meu hino durante um bom tempo, e embora essa bandeira ainda tenha alguma vitalidade, agora prefiro o “viver não é preciso”, no sentido de imprecisão, à boa moda lusitana.
Não quero GPS, não quero mapa, não quero guia, não quero rota, nem quero planos e templates normativos corporativos, não quero rotinas inflexíveis, não quero Norte: quero essas linhas sinuosas no horizonte em camadas e em relevos de verde; quero esses tufos de neblina que emergem dos córregos e rios próximos; quero as quatro estações num mesmo dia, a volúpia do clima em estripulias desmascarando a fachada de verão que sobrevive heroico só nas vitrines; quero esse silêncio de um lugar fora da cidade, quase na colônia, um híbrido calibrado entre a urbanidade necessária e a dispensável. Quero o frescor das noites e das manhãs. Quero a chuva que se vê e que se ouve, chegando de longe. E a geada.
Esse entorno contingenciado pelo meu desejo favorece a espécie de contemplação, que, penso, me conduz pela imprecisão dos contornos da serra que contemplo das janelas da minha casa.
É nesse lugar de imprecisões e incertezas e inconstâncias e variáveis e mudanças que vou me reinventar.
Pra quem acha que “viver não é preciso”, minha vida estava toda muito certinha.
em.flores – primavero