Como anunciei no meu post anterior, o primeiro texto da categoria “perguntas que me fazem sobre língua” com o qual me ocupo aqui é a respeito de uma colocação de uma colega professora. Estando sentada ao meu lado, ela sussurrou ao meu ouvido: “Eu não concordo com a expressão ‘vou fazer uma colocação’, pois colocar significa tirar uma coisa de um lugar pra colocar em outro”. Essa fala dela pra mim aconteceu assim que ouvimos um outro colega professor fazer um comentário para o palestrante, começando com “quero fazer uma colocação”, durante um recente encontro de professores universitários em atividade acadêmica.
Então, vejamos: a primeira coisa que eu faço aqui é dar concretude à minha seguinte afirmação: esta expressão é altamente produtiva, sendo utilizada inclusive (será principalmente?) por gente culta, em contextos formais de uso da linguagem. Tal produtividade dos enunciados fica logo evidenciada numa rápida pesquisa no Google, realizada domingo passado: para a expressão de busca “fazer uma colocação”, foram dados 11 mil resultados; alterando a expressão para “colocar uma questão”, o Google nos dá 76 mil resultados; alterando mais uma vez e pesquisando “a colocação que * fez”, temos 69 mil resultados e a pesquisa de “a colocação feita por *” resulta em 15 mil ocorrências. Lembro ao leitor que o asterisco inserido na expressão entre aspas permite que a pesquisa considere ocorrências seja qual a for a palavra que estiver ali, no lugar do asterisco, recurso que permite ampliar as expressões pesquisadas.
Só esses dados quantitativos já seriam suficientes pra atestar a legitimidade do uso da expressão, ou, colocando a questão de um outro jeito, o número de 171 mil ocorrências num site como o Google é um indicativo bastante seguro da adequação da expressão. Fica bem estranho tentar defender a idéia de que 171 mil pessoas estejam erradas, certo?
Isso significa o que? Significa que o termo “colocar” foi passando por uma especialização de sentido com o andar da carruagem. Realmente, se a gente pensar no apelo etimológico do termo, temos collocare, pôr em algum lugar. Assim, é claro que o termo (ainda) remete ao sentido de ‘lugar’, mas, com o uso, a expressão se especializa, ampliando e renovando seu sentido.
Se isso está coerente e dada a produtividade do uso da expressão, tal como visto nas, repito, 171 mil ocorrências do Google, é de se esperar que dicionários importantes registrem ‘colocar’ no sentido de posicionar-se em relação a algo/ alguém através de um enunciado linguístico, falando algo para alguém em contextos bem determinados de usos da linguagem. Por exemplo, no Dicionário Unesp do Português Contemporâneo, de 2004, no verbete ‘colocar’ encontramos ‘expor, apresentar’, e como exemplo aparece eu também quero colocar minha opinião. Verifiquemos também algumas das 13 acepções que o Houaiss de 2009 apresenta para “colocar”. Num primeiro bloco, trago aqui “botar, situar (algo, alguém ou a si mesmo) [em algum lugar, em determinada situação, posição etc.]; pôr(-se)”, e como exemplos, colocar o pé no estribo, o técnico colocou o time em primeiro lugar; além dessa acepção, há também “assentar, depositar, arrumar”, como no enunciado levou o dia inteiro para colocar tijolos. Num segundo bloco, as acepções de uso do verbete ‘colocar’ que aparecem no Houaiss são derivações de sentido, que certamente não causam estranheza ao leitor: ‘situar(-se) [hierárquica ou moralmente]’, tal como ocorre no exemplo a repreensão colocou José no seu devido lugar e ‘julgar (-se), considerar (-se)’, como no exemplo colocou-se acima dos outros. E pra não nos estendermos mais, na acepção 5 do verbete ‘colocar’ encontramos então ‘propor, aventar, expor’, acepção exemplificada pelo Houaiss com colocou uma questão.
Dito isso, vamos ver na sequência quatro exemplos de contextos de escrita publicada na web em que foi encontrada a expressão ‘a colocação feita por *’.
1) Texto científico, monitorado: a colocação feita por Trivinos, quando diz que as teorias estão fortemente determinadas pelas condições sócio-económicas, históricas e culturais […].
2) Texto científico, monitorado: É difícil decidir se a colocação feita por Frege do problema da significação foi realmente benéfica ou prejudicial para os estudos semânticos […].
3) Texto formal, jornalismo impresso, monitorado, com discurso reportado da fala de uma desembargadora: Neste sentido, a desembargadora do Tribunal de Justiça de São Paulo, Genacéia Albeton: “É acertada a colocação feita por Arruda Alvim, …” […].
4) Texto formal, jornalismo impresso, monitorado: Luiz Fernando Figueiredo, analista do banco norte-americano JP Morgan, disse ser “verdadeira” a colocação feita por Meirelles […].
Das 15 mil ocorrências para a expressão ‘a colocação feita por *’, essa pequena amostra reproduzida acima deixa claro que a expressão ‘colocar’ com o sentido rechaçado pela professora é amplamente utilizada por falantes cultos, e, como se vê nos exemplos, amplamente utilizada também por quem escreve texto formais e monitorados em termos de expressão linguística. E já se sabe que do ponto de vista da variação e mudança linguística, a fala culta e escrita formal são as duas instâncias do uso da linguagem que legitimam a forma/expressão em uso, tanto do ponto de vista linguístico quanto social (ver Faraco, Linguística Histórica).
Assim, concordar ou não com a expressão usada pelo colega já não faz a menor diferença. A língua, como sempre, segue seu curso.